28/12/2017

Entrevista concedida à Revista Literária Walking in A Briar Cliff, 2015.


Quem é Rafael Lopes?

Tentar responder a esta pergunta é relembrar uma dor que sinto todos os dias de manhã, ao abrir os olhos, simplesmente por ignorar quem sou. Tudo o que contemplo e sei acerca de mim mesmo são nomes que outros me deram.


Tua escrita se divide entre clássica e melancólica versus anárquica e transgressora. Que tipo de experiência motivou você tentar outro estilo?

Minha escrita tem várias facetas, o que eu escrevi na questão anterior, aqui se estende, quase se justifica. Acho que o cunho da poesia para mim é o tempo (ou a procura de me situar nele). Estou perdido aqui, e minha ilusão é achar que posso transitar entre o passado e o presente valendo desses dois moldes (poesia clássica e contemporânea).


Bate vontade de parar de escrever às vezes?

Já parei por um tempo (alguns meses), mas foi por algum tipo de bloqueio mesmo, não por vontade própria. Vi tudo com certa naturalidade, não forcei nada, nem me desesperei. Deixei aquele hiato sangrar e sangrar, até que não havia mais nada que fazer; não dá pra esquecer que a vida por si só não basta...


Acha os escritores de hoje em dia muito egocêntricos? O escritor só sabe falar de si?

Não penso dessa maneira. O começo de tudo, em poesia, foi assim, falando-se sobre o que se sentia. É a voz que age, independentemente sobre qual assunto, numa unicidade que caracteriza a legitimidade da arte. O poeta pode dizer/escrever o que ele quiser, entretanto, ele é o instrumento único de sua arte, sua voz jamais o excede.


O estilo de uma escrita reflete a personalidade do escritor? Com dois estilos que divergem um pouco, e buscando continuar ambos, tu sente como se tivesse duas personalidades? Como é isso de escrever em estilos divergentes?

Está aí um problema com o qual estou aprendendo a lidar aos poucos. Meu primeiro contato com a poesia (primeira impressão) foi ainda no colégio, em um trabalho em grupo sobre literatura brasileira, nos idos dos anos de 1998, acho . Era uma pesquisa que tínhamos que fazer sobre a vida e a obra de Álvares de Azevedo. Até porque (quero deixar aqui uma crítica pertinente), não se ensina sobre poesia contemporânea no Brasil, lamentavelmente. Então comprei a “Lira dos Vinte Anos”, que me fascinou. Depois disso, muitas coisas vieram, muitos poetas também tido como clássicos, mas já de outros países. Meu contato com a poesia contemporânea é relativamente recente. Eu já lia poetas mais atuais, mas escrever nesses moldes, isso é coisa nova .

E devido a essas influências clássicas, me atentei à métrica: no começo (isso ainda me causa risos) chegava a escandir até as coisas que eu e os outros falavam, e então comecei a escrever sonetos. Gosto de escrever sonetos. Gosto do desafio que esse tipo de estrutura me propõe. Caminhar por sobre aquelas catorze tábuas, uma após outra, todas do mesmo tamanho, equilibrar-se sobre elas; o desafio é não cair (errar a métrica, por exemplo), e passo após passo, chegar ao final ileso, satisfeito.


Tu parece um cara com uma energia pra cima, em geral, mas tua escrita – em qualquer estilo – reflete um lado um pouco obscuro e melancólico. Você escreve em momentos de tristeza? Acredita no poema feliz?

Gosto de tratar as pessoas bem, mas isso não significa que eu seja uma pessoa feliz. Tenho minha consciência bem apurada quanto à minha solidão; sou uno, habito em mim antes de qualquer outro lugar.

A alegria é dispersiva, repele a concentração. Ela basta por si só. A concentração, em contrapartida , é uma tristeza velada, meio lógica, que tem a capacidade de trasvestir um sentimento em outro – no caso da poesia - , por isso é que não acredito em poema feliz.


Você tem alguns elementos religiosos aparecendo em poemas. Acredita em deus? Acredita em religião? Acredita em poesia? Acredita na distinção entre essas coisas?

Todas as abstrações são resquícios de desespero. Seja por mea culpa, seja pela inerente ignorância do humano acerca de si mesmo e do seu meio. Toda crença é um sinal de exasperação; Em se haver ou não um deus, ambas as conjecturas são sinais de desespero. Estamos todos no mesmo barco. Eu creio em Deus porque a vida é uma extravagância. Aquele que não crê, não vai mudar esse estado, e pior, não vai conseguir provar que estava certo . Penso que tudo se resume a isso: em se estar certo. Toda crença tem como finalidade a auto-afirmação.

A poesia é uma complexidade à parte, um paradoxo dos diabos!


Se tivesse pegado fogo em todos teus poemas e um deles pudesse ser salvo, qual seria?

Nossa! Julgo um caso perdido já um poema terminado, para se ter ideia. Todo poema terminado deixa de nos pertencer.


A poesia é um lugar de exposição extrema?

A exposição que se nota na poesia é conceitual, técnica, não tem nada que ver com a imagem do poeta, sua história. Tudo que é exprimido, nesse sentido, são recriações construídas sob esses mesmos conceitos, técnicas, apreendidos.


A poesia vem em qualquer momento do dia? É um vício? Como lida com bloqueios, caso os tenha?

Sim, a poesia está presente em tudo! No meu caso, ocorre quase sempre, porque eu a busco nas coisas para me satisfazer, mudar o meu dia, esquecer da rotina esmagadora. Mas nem sempre essas impressões se cristalizam num poema. Todo fluxo poético é, primeiramente, apreendido como experiência sensorial e inteligível; inconscientemente toda essa “ matéria-prima” poderá ser usada em algum poema depois. Isso se dá também com as leituras que fazemos, que acabam contribuindo para a formação do nosso estilo.


O que fez o Rafael virar poeta? Como chegou a isso?

Difícil explicar isso... Isso é muito tênue. Penso que todos nós damos um jeito de expressar nossos sentimentos, nossas impressões sobre alguma situação, e cada um acaba descobrindo um meio mais propício para realizar isso. Eu tentei na escrita, e esse foi o meio pelo qual me sirvo até hoje para e expressar. Assim como o é a pintura para uns, a música para outros...


Já magoou alguém com a tua escrita?

Eu acredito que não... pelo menos não que eu saiba (risos)


O poema cura a dor?

Nada cura uma dor. A dor não é só fisiológica, científica, é também, sensorial. Vê-se a dor, respira-se a dor, toca-se, etc. Mas somente a dores primitivas, que coexistem fora da arte. O poema é uma dor trabalhada.


Poesia é exercício ou inspiração?

Poesia é experiência, trabalho.


Dizem que quem escreve muito vive pouco. É verdade?

Se for poesia, pode até ser. Se é que você me entende... (risos)


Pudesse viver outra vida, tu queria?

Não suportaria mais nada que ter essa vida para se pensar.


Há algo que odeie no fato de ser poeta?

A arte é um paralelo, uma correspondência. Queria só estar do outro lado...

14/12/2017

Caranguejo



I

era em uma idade plausível em que ainda se confundiam as cinturas das mulheres com colares de carne. nada de promíscuo. os olhos viam e a imaginação obedecia. flaminautas trazidos da cegueira iminente do sol fincavam os pés de chumbo no chão, feito bombas rubras de sonho, afundavam meio metro terradentro e formavam ocos, que dir-se-ia, davam para uma antessala para o futuro onde meninos ansiosos dormiam. a fala era mole, mas larga, dolente, dita entre dentes de leite, solta entre termos imprecisos, rasgava inconscientemente como tecido frágil, mas era quase nunca, afinal se tratava de uma criança doce. olhando as nuvens, perguntou à sua avó: de que elas são feitas? de pele, menino, as nuvens são a pele morta de Deus.

via as réstias do meio-dia prenhe de micro-organismos, aliás, todo feixe de luz nadava no ar, e em toda a sua profundidade se ocultava um fato ignorado, e na terra preta, e no ferro-cromo. como em um dia em que escondido, deitou leite fresco na terra preta, queria mesmo pequenos vilarejos oníricos ladrilhados de carrara ou um pé de fruta-leite. e então num labor pequeno cavava as mãos nuas, cavava as mãos leves, mãos como brotos de gengibre de tão pequenas, e a terra sob as unhas, e a terra junto à pele, às vezes além da lúnula, ia tocando alguns minérios mais jovens. mas na verdade não desejava nada; imaginação não é desejo, é cultivar uma flor única, regar-lhe somente a sombra, aferir sua temperatura com o dedo indicador embebido em saliva, e nem por um segundo perceber que essa flor não existe.

um caranguejo aguardando tempestades. cangrejo, su cabeza, caja de recuerdos. sus pinzas, monstruosidades delicados, abarcam o tempo ínfimo, a respiração das marés, e acenam nostálgicos, diante das ruínas anunciadas dos palácios de salsugem. sus pinzas cavan ligero, sus pinzas pequeñas cavan reviram a terra, engendram perfumes para as raízes, acalentam minérios, e na lama mole llamada vientre, fabulam planos antiguerra, mesclam as doutrinas do silêncio-musgo e da gosma-urdida, no regaço do pai-barro realizam proezas, promovem festins na podridão underworld mangue-preto, e se pegos subitamente pelas marés, os malditos caranguejos sempre sonhando


II

o sal do suor deturpa a visão, a febre da rotina rota, a rota para a degeneração é o corpo-presente-de- grego. ver-se sem espelhos, a imagem de si mesmo é siamesa de pensamento, de lembrança em lembrança constrói-se infinitas vezes a sua persona, aliciada na cilada do flagrante, o sujeito equatorial trasvestido da carapuça que lhe ser-vil. vai saber quanto custa ser crustáceo

perdoem-me se guardo um coração e não pérolas no cefalotórax: certa noite de farra, cerrada de luzes fora e luzes inside decidi arriscar em um alvo, a dona do vestidinho batido mascava algo que depois descobri, não era chiclete, eram palavras sem conteúdo, mas podia ter me apaixonado de verdeamarelo assim mesmo e seguir pelo resto da noite com ela, a cabeça cheia de whisk, falando merda em meio a música ruim, deslizar as mãos pelo seu colo, como lesmas quase cegas, mas as luzes pontiagudas sempre ferem um romântico ressuscitado, a palidez neon esgrima contra olhos desdenhosos (será que sob essas luzes todas, ela confundiria meu coração com uma maçã?). falhar em resgatar a Hidra, e embora com a boca-gengiva degustando, depois de milênios, o sangue de Hércules, sinto muito por toda a minha linhagem, mas foi a empreitada mais fácil.