20/03/2017

POEMA DA FOME




I


A fome nasce entre ninhadas de arames farpados
no limiar da palavra fome
dentes cegos que nada cheiram nada ouvem nada sentem
só mastigam


nos bocejos da palavra fome
revoadas de abutres camuflados de tempestades
tavernas de Pantagruéis enrabados
por garrafas de cabernet


A outra cabeça se chama sede
é tão alta quanto a primeira
Fora o grande rumor do torso
Imbricado em grãos de areia
Fala enquanto espumareja
No canto esquerdo da boca
Desertos de aridez amarela
O sal a areia o vinagre
Desarranjados garganta a dentro
Seguem irmanando em ciclos
Ambiciosos projetos de morte


Sua língua viscosa e visguenta
O âmbar escuro dos cabelos
Lilith tatuada na escápula
E no pescoço
Um colar de ossos de gente
de toda cor credo e classe social
A fome da sede a
Sede da fome



II


Sístole e diástole dão lugar ao cabo de guerra dos intestinos
o corpo inteiro metamorfoseando-se em boca
a
boca do fígado
a boca do osso
a boca do rim
a boca do sangue
a boca do olho morrendo
a boca da boca cerrada
a cabeça da boca vazia
a boca dos braços pendidos
a boca dos pés claudicantes
a boca-inconsciência
a boca-apopsiquia
a boca devorando outra boca
que devora outra boca
que devora mais outra
entre dois espelhos na penumbra
há uma boca escancarada



III



Meninos homens ventrudos
Beijados lambidos por moscas
Verdes azuis famintas
Quantos morreram comidos
pela palavra Estômago?
Nem a cara de george washington
num papel com o número cem
paga a pele que se despedaça
paga a pele que se despedaça


As costelas que saltam pulam
aos nossos olhos saciados
Nem tanques de guerra explodem
Os pães duros tal pedra
Casco couraça da fome


Quem são estes os iludidos
Que pensam que o império da fome
Está na áfrica ou na síria
Mas ela está em nossa alma
Em nosso sangue cativo
Nasce morre conosco
E nos devora após mortos


IV



Quando a fome aperta
o diabo se abaixa
pra comer o seu pão amassado
com grande vergonha talvez
e orgulho ferido e empáfia
o orgulhoso o sisudo o sagaz
quem são estes diante da fome
que máscaras grotescas carregam
com presas saliva rosnando
que ouro que prata que pedra
preciosa vale ante a fome
que música sublime ofusca
o ruído rompante das tripas
e o tempo que anda o devir
quem sabe Heráclito sonhava
com o tempo metáfora da fome.

13/03/2017

CLAVILÂMINAS

O corpo do céu se estende como um rio que se passa por pele. pelas profundidades há doses suficientes de silêncio e de água ciclicamente saciando a fome das  quedas. no momento em que se compreende que as árvores nasceram para que cultivemos o dom da espera (sem a ortodoxia das pedras) em algum lugar do mundo um anjo explode um tanque de guerra. vamos percorrendo o corpo das estações intrínsecos como um tipo raro de sangue fluindo pelas fases da lua mariposeando em torno das lâmpadas das sensações tendo o reflexo das constelações circundando nossas virilhas há grandes possibilidades de dominarmos a arte de exumar os sonhos dos mortos perscrutados no âmago das flores ou de se fazer enxergar a tablatura das toadas do fogo e suas fraturas depois de tanta dança um fac-símile de a(r)derências quando platonicamente vemos as esculturas das sombras as chamas moribundas antecedendo as cinzas como a carne antecede ao pó. que rito ou mito tem prolongado a juventude do Vazio tem ocultado seus parentescos? auscultamos somente seus sinônimos através do desespero de distribuir nomes de forjar verdades do outro lado do biombo estão luzindo os esqueletos impossíveis do Mistério enquanto a estação das chuvas não vem  estaremos tocando clavilâminas em um dia de pouco vento